quarta-feira, 28 de julho de 2010

A ARTE, A CRIAÇÃO E UM GUARDA ITALIANO


Carro emprestado, frio de trincar os dentes e mapa, tudo perfeito para roteiro italiano, indo por indicação a Firenze. Meu anfitrião Darcy Andreetto garantia que eu não poderia perder, que é meu estilo de lugar, com museus, galerias, arte pelas praças, enfim, aquela coisa toda que ouvimos falar, mas o nome da cidade não me dizia nada.

Dirigidas as muitas e muitas milhas, Milão, montanhas e Firenze e já no quarto do hotel, olhando aqueles folhetos que nunca se olha, limpo os olhos para ter certeza Firenze = Florença. Eu estava na terra do meu xará, o David (ou Davi). Alegria total, agora sim eu concordava com tudo que me diziam sobre a cidade. Os ambientes das praças e fachadas dos prédios nos mostram tudo sobre a preocupação dos governantes do local em embelezamento, ostentação e preservação da cultura. E alguns amantes da arte. As homenagens a escritores em bustos e estátuas percorrem um panorama tão vasto que só podemos admirar mantendo em mente os tantos séculos de criação que estão ali, a idade da cidade e todos os que contribuíram.

Nossa mente de país jovem e no caso da arte quase que recém nascido, primeiramente nos dá uma idéia de “ajuntamento” e que vai sendo vencida pelo encadeamento das histórias contadas pelas obras na praça central. São mitos, guerras e personagens que foram deixando espaço para o surgimento do outro, e os mecenas à seu tempo, pedindo o encadeamento do que estava sendo contado, e aqui e ali com algum personagem da família, com certo resguardo, pois um mortal, por mais quase imortal que fosse, ficaria ridículo ao lado de Hércules. E isto está cuidado em toda parte, não se embatem as figuras artísticas com o dono do poder da hora.

A harmonia de Florença/Firenze é que a arte só brigou para conseguir recursos para manter o artista vivo, e concedeu alguns retratos de família, mas o conjunto é um grande encontro, como bar gigante onde se assentam os seres mitológicos e outros personagens que escreveram e descreveram o mundo até uma época. Em Orlando a Mulher Imortal, de Virgínia Woolf, existe uma conversa entre o senhor do castelo e o poeta, onde o segundo diz que poderia escrever obras e revisar as obras do senhor, desde que com uma pensão paga trimestralmente, que soa em inglês bastante estranho. Acordado isto, o senhor passa às mãos do poeta algumas de suas criações, que são consideradas um lixo. O mordomo pergunta ao senhor: “- O demitimos?” E aqui vai um fundamento que o conjunto de Firenze/Florença me passou, que é esta resposta do senhor: “- Não, faz algum tempo que não escuto alguém me dizer a verdade, mantenha a pensão, mas deixe-o longe.”

A visualização da arte nas praças, naquele conjunto, é um conjunto de verdades sobre a importância dos símbolos artísticos, a estética e a separação do espírito na hora de criar. E a criação nos deixa de presente a história de que havia sobrado um pedregulho num canto da praça, de outros trabalhos realizados, tanto embaraçoso quanto caro para a municipalidade, e Michelangelo resolveu pedir aos vereadores da época aquele pedregulho, e ganhou. Dado seu tamanho, moveu pouco para que pudesse trabalhar, e daquela pedra, em que ele disse que apenas retirou o que não era o personagem saiu o David. Ficou na praça até que invasões fizessem os governantes retirá-lo para local mais seguro, e depois inundações e outros percalços tornaram-no um andarilho. Hoje está firme em um museu e uma réplica na praça. Mas ao olhá-lo ele parece que vai sair andando, a posição dos pés e a flexão dos músculos é de algo em movimento.

E entro no museu, filmadora em punho, olho e não vejo restrições a maquinas e até algumas raras pessoas portanto as suas, e vou filmando. Na frente do gigante de 4 metros de altura uma segurança me alerta, - Desliga que não pode. Daí desligo. E logo em seguida vem um guarda e diz: - Vai, vai pode filmar, só não pode usar flash, vai firme. E liguei e segui filmando, mas,... já mudando de posição e com a máquina muito menos exposta. Passados alguns minutos a segurança avisa de novo – Desliga. Desliguei. E vem o guarda: - Não desliga nada, ela não sabe nada, que problema tem uma filmagem, as pessoas vem de longe e não podem levar uma imagem? Vai, vai. Fui.

E daí que tenho um filme com vários ângulos do meu xará, que me pôs a pensar que Deus poderia ser tão bom escultor como Michelangelo, mas entendo que trabalhar com matéria viva é mais complicado. Das cenas de Mercúrio, de Zeus e os retratos dos da época pode-se ver que a arte estava na estrutura do lugar, e as salas com mapas mostram que era também tempo de descobrir o mundo novo, e com rápida olhada se vê que já não era tão novo lá naqueles tempos e daí um guarda, que não apenas guarda, mas cria em seu espaço limitado uma oportunidade de registro da arte, que é evitado não pelo dano, mas pela diminuição na venda de souvenires na saída. Em Florença/Firenze a arte era paga antes, mantendo o artista vivo e agora faz viver a cidade.

Autor: David Pokorski
David, obrigada por dividir conosco suas impressões de viagem.

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